Ailton Krenak fala com exclusividade sobre os bastidores da Constituição de 1988 e o cenário político atual para os povos indígenas do Brasil
por Cláudia Cavalcante
31/01/2020 - às 02h55 - Boa Vista/RR
31/01/2020 - às 02h55 - Boa Vista/RR
Krenak, durante a entrevista. Foto: Cláudia Cavalcante |
Grupo Moitará
– Hoje, como você vê a sua intervenção na
Assembleia Nacional Constituinte?
Eu fiz alguma coisa muito
Terra, muito objetiva. A intervenção que fiz, ela produziu um
instante em que a minha fala, discursiva, que o meu discurso e o meu
gesto ganharam uma potência tal, que os meus inimigos ficaram
paralisados, e a gente conseguiu abrir esse portal por onde o nosso
povo passou, não um indivíduo, mas o nosso povo passou. A demanda,
digamos assim, reprimida historicamente por direitos dos povos
indígenas, arrombou a barragem deles, pelo menos uma.
Grupo Moitará
– Como foram os bastidores para
inclusão dos direitos indígenas na Constituição de
1988?
Ailton Krenak – Os bastidores da Constituinte de 88 foram as ruas, as “Diretas Já!”. Quando a Constituição foi promulgada, ela foi percebida na América Latina como um instrumento muito avançado. Uma estudiosa do México veio me entrevistar na década de 90 dizendo que no Brasil o movimento social conseguiu avançar, aproximando a ideia de plurinacionalidade; que estávamos caminhando para ideia de uma nova constitucionalidade. Eu não sou especialista em direito e achava tudo isso muito curioso, o máximo que me desperta é o orgulho de ter participado de um arranjo que incluía desde especialistas em política até os movimentos sociais mais incipientes. Uma coisa que eu acho curiosa é que alguns segmentos da vida brasileira que tinham pouca expressão no cotidiano conseguiram incidir sobre o debate político do Congresso Nacional de uma maneira tão eficaz que marcaram a passagem por lá. Eu incluo a conquista dos povos indígenas nesse campo, no campo das impossibilidades, por que historicamente os índios já tinham sido declarados extintos. Na Constituição de 1988 a gente fez esse povo ressurgir. Se tem importância a continuação do movimento indígena, retomar o território, a identidade, a língua, a cultura, isso veio depois de 1988. Você não vai encontrar registro nem nos antropólogos clássicos, nem no Darci Ribeiro nenhuma referência a um processo que a gente pudesse considerar como retomada, em algum sentido, de aspectos da cultura profunda de um povo ao longo da ditadura, por exemplo, ou do período que antecedeu a ditadura. Em 1964, o que a gente tinha era uma contagem regressiva mesmo: “os índios estão se acabando”. Então, avançar hoje para novos temas, eles se originaram lá naquelas mobilizações das “Diretas Já!”.
Grupo
Moitará – Passados 32 anos da promulgação, qual sua
leitura da Constituição de 1988?
Foto: arquivo pessoal |
Grupo Moitará – Como
você avalia o cenário político brasileiro atual?
Ailton
Krenak – Antes de apreciar o tempo presente,
considero importante voltarmos na década de 90, onde nós
conseguimos fazer o impeachment do presidente Fernando Collor
de Melo, que deu a todos nós uma sensação de maturidade, que nós
estávamos avançando na democracia. E depois, nós tivemos um
desdobramento na vida política do País, que foram os dois mandatos
de Fernando Henrique Cardoso, onde ele comprou o segundo mandato para
poder se manter no poder e todo mundo achou isso normal. Nós fomos
deixando o monstrinho crescer e não percebemos que ele estava se
espalhando para além do gabinete da Presidência da República,
afetando Ministério Público, Procuradoria-Geral da República e o
sistema judiciário inteiro, até que um juiz de uma província
qualquer se sentiu tão empoderado e decidiu encabeçar um golpe
contra a democracia, virando uma espécie de “santo guerreiro”
contra a corrupção. Na verdade ele é a própria alma corrupta, que
manipula o sistema de uma maneira extraordinária, que sai da
condição de província pra superministro de tudo.
Grupo Moitará – E
o que representa esse cenário político para os povos indígenas no
Brasil?
Ailton Krenak
– Na verdade, de
2010 pra cá nós já estávamos nesse cenário atual. A gente não
via, mas a gente já tinha tomado um golpe lá atrás. As armadilhas
de sabotagem da democracia já estavam se aprofundando, inclusive a
partir do colégio eleitoral, decidindo quem poderia ser candidato e
quem não poderia. Excluindo. Selecionando. Ali definiram que poderia
ter dinheiro pra campanha e que elas poderiam ser bilionárias, “quem
tiver mais dinheiro, leva!”, foi isso que ficou decretado à época.
Surgiu então a polarização partidária, de um lado o partido dos
trabalhadores e do outro o partido dos banqueiros, daqueles que se
viram ameaçados pela Constituição de 88. A direita se aglutinou no
PSBD, e eu acho que eles elegeram como linha mestra pra sua unidade,
rasgar a Constituição, e aí começaram a governar por medida
provisória e proposta de emenda à constituição, anulando a
Constituição de 88, isso sem falar na judicialização extrema.
Todas as nossas demandas têm que ser judicializadas. Pra iniciar um
estudo de identificação de uma terra indígena, alguém vai lá,
entra com uma ação, interdita, vira uma confusão e aí pára tudo.
Então quer dizer, o cenário político atual é um jogo eivado de
maldade e cheio de covardias, golpes e sacanagem. Podemos considerar
que o período que nós estamos vivendo hoje é “feio, sujo e
malvado”.
Grupo
Moitará – Como você vê a negação dos direitos indígenas por
parte do Estado brasileiro?
Ailton
Krenak – Como
um certo establishment
já consolidado sobre o pensamento colonial brasileiro. Quando eles
viram o que era a Constituição de 88 e o que significava o avanço
social e político de uma parcela da população brasileira que foi
excluída a vida inteira, a direita ficou arrepiada e começou a
produzir os monstrengos que nós temos que ver andar na rua hoje.
Grupo Moitará –
E que você tem a dizer para as lideranças indígenas que
despontam nesse cenário?
Ailton Krenak
– Os jovens, meus netos, meus sobrinhos, nossos filhos,
eles têm pelo menos, um portal pra eles olharem. Se eles quiserem
olhar esse portal e se conduzirem pra ele, é uma escolha, diferente
dos brancos da cultura ocidental. Eu prefiro pensar uma parábola.
Pensar em uma espiral, onde aquilo que nós, a cada geração
aprendemos, possa, de alguma maneira, provocar contato com a geração
que está nos sucedendo, paralela a nós, e provocar nelas faíscas,
visões, ideias. Eu acho que foi o que aconteceu comigo lá atrás,
quando eu me incomodei pra sair andando pelo mundo.
Grupo Moitará
– Sair andando pelo mundo significa
cruzar fronteiras. Com vê esse tema?
Ailton Krenak -
Essa coisa de fronteira pode ser percebida de diferentes perspectivas
– política, geográfica, territorial – e não atinar com a
fronteira fundadora de tudo isso, que é a ideia de uma pessoa no
mundo. O outro. A primeira fronteira que precisamos reconhecer é o
outro. Além de mim tem uma outra pessoa, e essa outra pessoa não se
parece comigo. Ele não sou eu. Ele não é uma cópia minha e sim um
outro ser original de si mesmo. Diante dele preciso ter calma pra
saber o que ele está dizendo, o que ele está sinalizando e que
a gente pode descobrir que temos coisas pra fazer juntos. Se a gente
descobrir que nós temos coisas pra fazer juntos, nós estamos
tornando a fronteira permeável, fluida. Se a gente descobrir que nós
não temos sinais compartilhados, esse organismo, essa tela da
fronteira, vai se cristalizando e pode virar um muro. Muro mesmo,
duro, onde o outro está do lado de lá, e o outro, que sou eu, está
do lado de cá, e a gente começa a imaginar o quê que o outro está
fazendo atrás do muro, ao em vez de ter a coragem de fazer um furo
no muro, olhar o que o outro está fazendo do lado de lá, ou se
deixar ver também pelo outro. Esses movimentos chamam a atenção
quando eles vêm pro campo das relações entre povos que têm
territórios vizinhos – Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai,
Venezuela.
Grupo Moitará –
Como vê a crise migratória na América Latina?
Ailton Krenak –
Nós temos diferentes períodos da história do Estado brasileiro de
conflitos com esses vizinhos, isso não é nenhuma novidade. A gente
sempre recebeu imigrantes, porém, outro tipo de presença que veio
pra cá pra viver aqui, fazer a sua história de vida, constituir
famílias. Os brancos têm a mania de dizer que eles vêm pra cá pra
colonizar, e então eles justificam essa colonização pela sua
história, mas como refugiados, nós tivemos essa surpresa com a
travessia dos que vieram do Haiti, os haitianos, e mais recentemente
com as diferentes etnias da Venezuela, principalmente indígenas,
como os Warao, que
surpreendeu muita gente, como
se fosse uma extravagância, um povo originário se refugiando do
outro lado da fronteira.
Grupo Moitará –
Recentemente você escreveu “Ideias para adiar o fim do mundo”,
livro publicado pela Companhia de Letras. Fale um pouco sobre o tema.
Ailton
Krenak – O
livro reúne três conferências que eu fiz
lá
em
Portugal,
portanto, fora do Brasil, na Europa. Naquele lugar imaginário de
onde saíram os brancos
pra
virem
pra cá. Aí
saiu um pensamento índio e foi lá falar, na terra deles. É
interessante falar sobre isso: o lugar onde eu estava falando essas
palavras. Porque se eu estivesse falando essas palavras aqui, por
exemplo, elas tinham um
sentido, mas falar isso numa praça, em Lisboa, tem outro sentido, ou
numa universidade na Europa. E
uma
delas ficou com esse título “Ideias pra adiar o fim do mudo”,
que virou o
título do livro. Um
dos pontos que abordo é o conceito limitador da humanidade para as
civilizações de hoje, em que homens se veem como algo separado na
natureza. Eu não consigo perceber onde tem alguma coisa que não
seja natureza. Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo que eu
consigo pensar é natureza. Se o mundo está em queda, em um abismo,
é preciso voltar e reconhecer a vida como um campo de gozo, e não
dá pra buscar só
riqueza
e acumulação. É necessário inventar os próprios paraquedas. Para
adiar fim do mundo é preciso começar com a urgente e libertadora
tarefa de tentar reinventá-lo, sem a falsa ideia de desenvolvimento
sustentável e de um mundo com
mais
consumidores do que pessoas. Nosso tempo é especialista em criar
ausência do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da
experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com
quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de
dançar, de cantar. Se
o
assunto é o fim do mundo, os povos marginalizados, invadidos e
atacados há
séculos, são, de certa forma, os grandes especialistas. A Terra
como os povos indígenas a conheciam no século XVI acabou com a
chegada dos colonizadores europeus.
Quando
não foram dizimados pelo mero contato ou por guerras, eles foram
relegados a territórios limitados e estrangeiros às
suas tradições. Tem 500
anos que os índios estão resistindo. Eu estou preocupado é com os
brancos, com o que vão fazer pra escapar dessa.
Grupo
Moitará
– Defina Ainton Krenak.
Ailton Krenak ao centro, com Davi Kopenawa Yanomami e vovó Bernaldina Macuxi |
Ailton
Krenak - Eu
acho
que eu sou um mutante. Ailton
Krenak
é movimento,
transformação.
Quando
alguém me
pergunta
como
despertei
pra
consciência política,
eu
respondo:
interessante como uma pessoa acha que a gente pode ligar GPS e
localizar onde alguém despertou pra vida. Eu aprendi que a cada dia
que a gente vive, a cada período da nossa existência – na
infância, na juventude, na velhice – nós nos transformamos,
nós
somos seres em transformação, e a vida é isso. Se a gente ficar no
fluxo da vida nós nos transformamos. A gente pode ser o outro,
também. Não precisa ser só essa identidade fixa que alguns
estudiosos chamam de
“lugar de identidade”, alteridade, como uma simplificação da
experiência de ser. Uma acomodação.Em
vez de se incomodar,
aceita. Se você ficar na beira de um igarapé, você está
experimentando a beleza daquelelugar,
amanhã, quando você for lavar o rosto, nem você nem ele
serão
mais as mesmas entidades que ali
estão
– tem uma entidade córrego e uma outra entidade que é você, que
está
lá.
Nós temos uma tendência de fixar identidade, de não admitir que no
dia seguinte, quando você vai na beira do igarapé,
você é outro. Em
dos recentes
encontros
que tive com o xamã
Yanomami
Davi Kopenawa,
na
Galeria de Arte Indígena Contemporânea
do ativista
e
também indígena
Jaider Sbell, da
etnia
Macuxi, em Roraima, ele falou
para
os presentes:
“gente,
vocês pensam diferente do povo indígena, vocês têm
que mergulhar, e
mergulhar
fundo, se não vocês não ajudam a gente”. Eu
achei muito forte essa fala do Kopenawa, um
gesto generoso dele em
dizer: “olha, eu estou vendo vocês, eu ando, falo com vocês, e
vocês? Vocês
ficam na superfície de tudo. Mergulha.
Mergulha
fundo!” Na
verdade, a
mensagem é “presta
atenção”. As
pessoas precisam ter disposição pra mergulhar, entender o
mundo ao seu redor.
Grupo Moitará e-mail: moitaraunb@gmail.com
Siga-nos: https://www.facebook.com/moitara.unb/
Grupo Moitará e-mail: moitaraunb@gmail.com
Siga-nos: https://www.facebook.com/moitara.unb/