quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

ENTREVISTA ESPECIAL

Ailton Krenak fala com exclusividade sobre os bastidores da Constituição de 1988 e o cenário político atual para os povos indígenas do Brasil


por Cláudia Cavalcante
31/01/2020 - às 02h55 - Boa Vista/RR

Krenak, durante a entrevista. Foto: Cláudia Cavalcante
Ailton Krenak nasceu em 1953, na região do Vale do Rio Doce, Minas Gerais. É autodidata, produtor gráfico e jornalista, ambientalista e líder indígena pertencente à etnia Krenak. Seu processo de alfabetização teve início aos 18 anos. Aos 60 anos migrou com seus parentes para o estado do Paraná. Na década de 80 dedicou-se exclusivamente ao movimento indígena no Brasil, tendo participado da União das Nações Indígenas, criada em abril de 1980. Em 1987, durante a Assembleia Nacional Constituinte, foi autor de uma performance política que entraria para história. De terno branco, enquanto discursava no Congresso Nacional, pintava o rosto de preto com pasta de jenipapo, em sinal de luto pelo retrocesso que se articulava na tramitação do capítulo dos direitos dos povos indígenas. Também participou da Aliança dos Povos da Floresta, que reunia povos indígenas e seringueiros em torno da proposta de criação de reservas extrativistas. É fundador e dirigente do Núcleo de Cultura Indígena e do Festival de Danças e Culturas Indígenas da Serra do Cipó. Recebeu vários prêmios, entre eles o “Prêmio Internacional de Direitos Humanos Letellier Moffite para a América Latina” (Washington), o “Prêmio Homem e Sociedade”, da Fundação Aristóteles Onassis (Grécia) e o “Prêmio Nacional de Direitos Humanos” (Brasil). Em 2018 Aílton Krenak proferiu conferência de abertura no encontro nacional no promovido pelo Grupo Moitará UnB, sob o temaPovos Originários: entre a mobilidade e as fronteiras, em Boa Vista, capital do estado de Roraima.

Grupo Moitará – Hoje, como você a sua intervenção na Assembleia Nacional Constituinte?

Eu fiz alguma coisa muito Terra, muito objetiva. A intervenção que fiz, ela produziu um instante em que a minha fala, discursiva, que o meu discurso e o meu gesto ganharam uma potência tal, que os meus inimigos ficaram paralisados, e a gente conseguiu abrir esse portal por onde o nosso povo passou, não um indivíduo, mas o nosso povo passou. A demanda, digamos assim, reprimida historicamente por direitos dos povos indígenas, arrombou a barragem deles, pelo menos uma.

Grupo MoitaráComo foram os bastidores para inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988?

Ailton KrenakOs bastidores da Constituinte de 88 foram as ruas, as “Diretas Já!”. Quando a Constituição foi promulgada, ela foi percebida na América Latina como um instrumento muito avançado. Uma estudiosa do México veio me entrevistar na década de 90 dizendo que no Brasil o movimento social conseguiu avançar, aproximando a ideia de plurinacionalidade; que estávamos caminhando para ideia de uma nova constitucionalidade. Eu não sou especialista em direito e achava tudo isso muito curioso, o máximo que me desperta é o orgulho de ter participado de um arranjo que incluía desde especialistas em política até os movimentos sociais mais incipientes. Uma coisa que eu acho curiosa é que alguns segmentos da vida brasileira que tinham pouca expressão no cotidiano conseguiram incidir sobre o debate político do Congresso Nacional de uma maneira tão eficaz que marcaram a passagem por lá. Eu incluo a conquista dos povos indígenas nesse campo, no campo das impossibilidades, por que historicamente os índios já tinham sido declarados extintos. Na Constituição de 1988 a gente fez esse povo ressurgir. Se tem importância a continuação do movimento indígena, retomar o território, a identidade, a língua, a cultura, isso veio depois de 1988. Você não vai encontrar registro nem nos antropólogos clássicos, nem no Darci Ribeiro nenhuma referência a um processo que a gente pudesse considerar como retomada, em algum sentido, de aspectos da cultura profunda de um povo ao longo da ditadura, por exemplo, ou do período que antecedeu a ditadura. Em 1964, o que a gente tinha era uma contagem regressiva mesmo: “os índios estão se acabando”. Então, avançar hoje para novos temas, eles se originaram lá naquelas mobilizações das “Diretas Já!”.

Grupo Moitará – Passados 32 anos da promulgação, qual sua leitura da Constituição de 1988?

Foto: arquivo pessoal
Ailton Krenak – Eu queria que a gente olhasse a Constituição de 1988 como um estuário, onde foi dar na nossa praia todo tipo de organismo e nós estávamos tão eufóricos com a democracia que não vimos que estávamos comprando gato por lebre. Quando o Partido dos Trabalhadores conseguiu finalmente – depois de 11 anos de organização de campanha, tomando municípios, elegendo vereadores e prefeitos – eleger o presidente da República, nós achávamos que estávamos completamente salvos do fantasma do autoritarismo e da ditadura. De novo a gente celebrou antes de ganhar! Nessa época, os direitos indígenas já estavam sendo corroídos por uma portaria do Ministro da Justiça do governo Fernando Henrique, Nelson Jobim, que registrou a perda que a direita e o latifúndio estavam levando, e pela primeira vez, em 1995, colocou em questão se índios teriam o direito a reclamar a demarcação de territórios que fossem além do lugar que eles ocupassem com a maloca. Eles estavam repercutindo exatamente aquilo que o ex-presidente José Sarney queria um pouco antes, ou seja, fatiar a Terra Indígena Yanomami em ilhas. Queriam esquartejar o território dos Yanomami, lá teriam florestas nacionais, reservas garimpeiras, tudo dentro da terra indígena. E isso foi plantado no universo jurídico, no Ministério da Justiça e, é claro, foi parar no Supremo Tribunal Federal, a coisa foi se envenenando. Você tá vendo como é que eles fazem? Criam um monte de súmulas e então começam a produzir aqueles preceitos, aquelas súmulas, aquelas coisas todas. Aquilo não some, pelo contrário, fica dentro do aparelho estatal, entranhado no sistema, alimentando a coisa. É dali que vêm os golpes. Foi dali que surgiu o golpe contra a democracia e contra os direitos humanos. Os avanços são corroídos por dentro, por aquele tipo de vida que eles chamam de republicana, que na verdade é uma tremenda de uma conspiração o tempo inteiro pra manter o status quo, pra manter quem está no poder e simular um debate com quem está fora dele.

Grupo Moitará – Como você avalia o cenário político brasileiro atual?

Ailton KrenakAntes de apreciar o tempo presente, considero importante voltarmos na década de 90, onde nós conseguimos fazer o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, que deu a todos nós uma sensação de maturidade, que nós estávamos avançando na democracia. E depois, nós tivemos um desdobramento na vida política do País, que foram os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, onde ele comprou o segundo mandato para poder se manter no poder e todo mundo achou isso normal. Nós fomos deixando o monstrinho crescer e não percebemos que ele estava se espalhando para além do gabinete da Presidência da República, afetando Ministério Público, Procuradoria-Geral da República e o sistema judiciário inteiro, até que um juiz de uma província qualquer se sentiu tão empoderado e decidiu encabeçar um golpe contra a democracia, virando uma espécie de “santo guerreiro” contra a corrupção. Na verdade ele é a própria alma corrupta, que manipula o sistema de uma maneira extraordinária, que sai da condição de província pra superministro de tudo.

Grupo Moitará – E o que representa esse cenário político para os povos indígenas no Brasil?

Ailton KrenakNa verdade, de 2010 pra cá nós já estávamos nesse cenário atual. A gente não via, mas a gente já tinha tomado um golpe lá atrás. As armadilhas de sabotagem da democracia já estavam se aprofundando, inclusive a partir do colégio eleitoral, decidindo quem poderia ser candidato e quem não poderia. Excluindo. Selecionando. Ali definiram que poderia ter dinheiro pra campanha e que elas poderiam ser bilionárias, “quem tiver mais dinheiro, leva!”, foi isso que ficou decretado à época. Surgiu então a polarização partidária, de um lado o partido dos trabalhadores e do outro o partido dos banqueiros, daqueles que se viram ameaçados pela Constituição de 88. A direita se aglutinou no PSBD, e eu acho que eles elegeram como linha mestra pra sua unidade, rasgar a Constituição, e aí começaram a governar por medida provisória e proposta de emenda à constituição, anulando a Constituição de 88, isso sem falar na judicialização extrema. Todas as nossas demandas têm que ser judicializadas. Pra iniciar um estudo de identificação de uma terra indígena, alguém vai lá, entra com uma ação, interdita, vira uma confusão e aí pára tudo. Então quer dizer, o cenário político atual é um jogo eivado de maldade e cheio de covardias, golpes e sacanagem. Podemos considerar que o período que nós estamos vivendo hoje é “feio, sujo e malvado”.

Grupo Moitará – Como você vê a negação dos direitos indígenas por parte do Estado brasileiro?

Ailton KrenakComo um certo establishment já consolidado sobre o pensamento colonial brasileiro. Quando eles viram o que era a Constituição de 88 e o que significava o avanço social e político de uma parcela da população brasileira que foi excluída a vida inteira, a direita ficou arrepiada e começou a produzir os monstrengos que nós temos que ver andar na rua hoje.

Grupo MoitaráE que você tem a dizer para as lideranças indígenas que despontam nesse cenário?

Ailton KrenakOs jovens, meus netos, meus sobrinhos, nossos filhos, eles têm pelo menos, um portal pra eles olharem. Se eles quiserem olhar esse portal e se conduzirem pra ele, é uma escolha, diferente dos brancos da cultura ocidental. Eu prefiro pensar uma parábola. Pensar em uma espiral, onde aquilo que nós, a cada geração aprendemos, possa, de alguma maneira, provocar contato com a geração que está nos sucedendo, paralela a nós, e provocar nelas faíscas, visões, ideias. Eu acho que foi o que aconteceu comigo lá atrás, quando eu me incomodei pra sair andando pelo mundo.

Grupo Moitará Sair andando pelo mundo significa cruzar fronteiras. Com vê esse tema?

Ailton Krenak - Essa coisa de fronteira pode ser percebida de diferentes perspectivas – política, geográfica, territorial – e não atinar com a fronteira fundadora de tudo isso, que é a ideia de uma pessoa no mundo. O outro. A primeira fronteira que precisamos reconhecer é o outro. Além de mim tem uma outra pessoa, e essa outra pessoa não se parece comigo. Ele não sou eu. Ele não é uma cópia minha e sim um outro ser original de si mesmo. Diante dele preciso ter calma pra saber o que ele está dizendo, o que ele está sinalizando e que a gente pode descobrir que temos coisas pra fazer juntos. Se a gente descobrir que nós temos coisas pra fazer juntos, nós estamos tornando a fronteira permeável, fluida. Se a gente descobrir que nós não temos sinais compartilhados, esse organismo, essa tela da fronteira, vai se cristalizando e pode virar um muro. Muro mesmo, duro, onde o outro está do lado de lá, e o outro, que sou eu, está do lado de cá, e a gente começa a imaginar o quê que o outro está fazendo atrás do muro, ao em vez de ter a coragem de fazer um furo no muro, olhar o que o outro está fazendo do lado de lá, ou se deixar ver também pelo outro. Esses movimentos chamam a atenção quando eles vêm pro campo das relações entre povos que têm territórios vizinhos – Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai, Venezuela.

Grupo Moitará – Como vê a crise migratória na América Latina?

Ailton Krenak – Nós temos diferentes períodos da história do Estado brasileiro de conflitos com esses vizinhos, isso não é nenhuma novidade. A gente sempre recebeu imigrantes, porém, outro tipo de presença que veio pra cá pra viver aqui, fazer a sua história de vida, constituir famílias. Os brancos têm a mania de dizer que eles vêm pra cá pra colonizar, e então eles justificam essa colonização pela sua história, mas como refugiados, nós tivemos essa surpresa com a travessia dos que vieram do Haiti, os haitianos, e mais recentemente com as diferentes etnias da Venezuela, principalmente indígenas, como os Warao, que surpreendeu muita gente, como se fosse uma extravagância, um povo originário se refugiando do outro lado da fronteira.

Grupo Moitará – Recentemente você escreveu “Ideias para adiar o fim do mundo”, livro publicado pela Companhia de Letras. Fale um pouco sobre o tema.

Ailton Krenak – O livro reúne três conferências que eu fiz em Portugal, portanto, fora do Brasil, na Europa. Naquele lugar imaginário de onde saíram os brancos pra virem pra cá. Aí saiu um pensamento índio e foi lá falar, na terra deles. É interessante falar sobre isso: o lugar onde eu estava falando essas palavras. Porque se eu estivesse falando essas palavras aqui, por exemplo, elas tinham um sentido, mas falar isso numa praça, em Lisboa, tem outro sentido, ou numa universidade na Europa. E uma delas ficou com esse título “Ideias pra adiar o fim do mudo”, que virou o título do livro. Um dos pontos que abordo é o conceito limitador da humanidade para as civilizações de hoje, em que homens se veem como algo separado na natureza. Eu não consigo perceber onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo que eu consigo pensar é natureza. Se o mundo está em queda, em um abismo, é preciso voltar e reconhecer a vida como um campo de gozo, e não dá pra buscar riqueza e acumulação. É necessário inventar os próprios paraquedas. Para adiar fim do mundo é preciso começar com a urgente e libertadora tarefa de tentar reinventá-lo, sem a falsa ideia de desenvolvimento sustentável e de um mundo com mais consumidores do que pessoas. Nosso tempo é especialista em criar ausência do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. Se o assunto é o fim do mundo, os povos marginalizados, invadidos e atacados séculos, são, de certa forma, os grandes especialistas. A Terra como os povos indígenas a conheciam no século XVI acabou com a chegada dos colonizadores europeus. Quando não foram dizimados pelo mero contato ou por guerras, eles foram relegados a territórios limitados e estrangeiros às suas tradições. Tem 500 anos que os índios estão resistindo. Eu estou preocupado é com os brancos, com o que vão fazer pra escapar dessa.

Grupo Moitará – Defina Ainton Krenak.


Ailton Krenak ao centro, com Davi Kopenawa Yanomami e vovó Bernaldina Macuxi
Ailton Krenak - Eu acho que eu sou um mutante. Ailton Krenak é movimento, transformação. Quando alguém me pergunta como despertei pra consciência política, eu respondo: interessante como uma pessoa acha que a gente pode ligar GPS e localizar onde alguém despertou pra vida. Eu aprendi que a cada dia que a gente vive, a cada período da nossa existência – na infância, na juventude, na velhice – nós nos transformamos, nós somos seres em transformação, e a vida é isso. Se a gente ficar no fluxo da vida nós nos transformamos. A gente pode ser o outro, também. Não precisa ser só essa identidade fixa que alguns estudiosos chamam de “lugar de identidade”, alteridade, como uma simplificação da experiência de ser. Uma acomodação.Em vez de se incomodar, aceita. Se você ficar na beira de um igarapé, você está experimentando a beleza daquelelugar, amanhã, quando você for lavar o rosto, nem você nem ele serão mais as mesmas entidades que ali estão – tem uma entidade córrego e uma outra entidade que é você, que está lá. Nós temos uma tendência de fixar identidade, de não admitir que no dia seguinte, quando você vai na beira do igarapé, você é outro. Em dos recentes encontros que tive com o xamã Yanomami Davi Kopenawa, na Galeria de Arte Indígena Contemporânea do ativista e também indígena Jaider Sbell, da etnia Macuxi, em Roraima, ele falou para os presentes: “gente, vocês pensam diferente do povo indígena, vocês têm que mergulhar, e mergulhar fundo, se não vocês não ajudam a gente”. Eu achei muito forte essa fala do Kopenawa, um gesto generoso dele em dizer: “olha, eu estou vendo vocês, eu ando, falo com vocês, e vocês? Vocês ficam na superfície de tudo. Mergulha. Mergulha fundo!” Na verdade, a mensagem é “presta atenção”. As pessoas precisam ter disposição pra mergulhar, entender o mundo ao seu redor

Grupo Moitará e-mail: moitaraunb@gmail.com
Siga-nos: https://www.facebook.com/moitara.unb/