sexta-feira, 10 de setembro de 2021

MARCO TEMPORAL

Relator do STF considera que posse da terra indígena é definida por tradicionalidade.

Julgamento continuará na próxima quarta-feira (15).

Indígenas acompanham julgamento em Brasília/DF 
Foto: Alass Derivas - @derivajornalismo

por Cláudia Cavalcante 

Suspenso pela segunda vez na tarde desta quinta-feira (9), o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que discute a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando deve prevalecer essa ocupação, o chamado marco temporal, teve como ponto alto o voto do ministro-relator, Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em seu voto, o ministro afirmou que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser considerada como o marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas sobre a terra.

O segundo a votar foi o ministro Nunes Marques, porém não houve tempo hábil para conclusão da leitura de seu voto antes do horário estabelecido para o final da sessão. O julgamento deverá continuar na próxima quarta-feira (15).

Há duas semanas, o STF julga o processo sobre a disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte é questionada pela procuradoria do estado.

Acampados em Brasília desde o dia 24 de agosto para acompanhar o julgamento no STF sobre o tema, indígenas de diversas etnias de várias regiões do Brasil ecoam vozes e cantos em defesa de seus direitos, a espera de um desfecho favorável aos povos originários que contemple o respeito às suas culturas, ancestralidade, suas terras e seus povos.


Direitos fundamentais

Único a votar na sessão de hoje, Fachin argumentou que a teoria do marco temporal desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas por emendas à Constituição. Para o ministro, a proteção constitucional aos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” não depende da existência de um marco nem da configuração do esbulho renitente com conflito físico ou de controvérsia judicial persistente na data da promulgação da Constituição.

Para o relator, essa corrente de pensamento ignora que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, uma sequência da proteção nas Cartas Constitucionais e que agora, “num contexto de Estado Democrático de Direito, ganham os índios novas garantias e condições de efetividade para o exercício de seus direitos territoriais, mas que não tiveram início apenas em 5 de outubro de 1988”.

Raposa Serra do Sol

Fachin afastou a tese de que as condicionantes estabelecidas na Petição (Pet) 3388, que tratou da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, deveriam ser aplicadas às demais controvérsias sobre o tema. Ele lembrou que, ao apreciar os embargos de declaração (pedido de esclarecimento) em relação àquele julgamento, o Plenário assentou a impossibilidade de atribuição de efeitos vinculantes ao entendimento firmado.


Vida digna

Ainda segundo Fachin, os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, visam à garantia da manutenção de suas condições de existência e vida digna, o que os torna direitos fundamentais. Segundo o mesmo dispositivo da Constituição, a posse tradicional indígena é distinta da posse civil e abrange, além das terras habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, ressaltou.

Tradicionalidade

O ministro assinalou que a demarcação é um procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena. O laudo antropológico, previsto no Decreto 1.776/1996, é elemento fundamental para demonstrar a tradicionalidade da ocupação de uma determinada comunidade, segundo seus usos, costumes e tradições.

Redimensionamento

Em relação à possibilidade do redimensionamento de uma terra indígena, Fachin argumentou que, se demonstrada flagrante inconstitucionalidade no cumprimento das normas constitucionais para a demarcação, não há vedação para que o processo seja refeito, desde que seguido o procedimento administrativo previsto no Decreto 1.775/1996.


Direito originário

O caso concreto que originou o recurso diz respeito à reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), que entendeu não ter sido demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse ao órgão ambiental.

Fachin votou pelo provimento do recurso para anular a decisão do TRF-4, que, a seu ver, não considerou a preexistência do direito originário sobre as terras, conferindo hierarquia ao título de domínio enquanto prova da posse justa, sem proporcionar à comunidade indígena e à Funai a demonstração da melhor posse.


Situação complexa

O ministro observou que a situação fundiária brasileira é complexa e que os produtores rurais de boa-fé enfrentam diversas dificuldades, mas que a segurança jurídica não pode significar o descumprimento das normas constitucionais, em especial as que asseguram direitos fundamentais. Segundo ele, eventual perda da posse de boa-fé pode ser resolvida mediante o pagamento do valor referente às benfeitorias e a inserção prioritária em programas de assentamento pelo órgão fundiário federal, nos termos do artigo 4º do Decreto nº 1.775/1996.


Etnocídio

Para o relator, autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação. Seria, a seu ver, negar-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente, “expressão maior do pluralismo político assentado pelo artigo 1º do texto constitucional”. “Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição”, concluiu.

Com informações do STF.


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