quarta-feira, 7 de agosto de 2019

ENTREVISTA ESPECIAL

O despertar - A retomada levada a cabo pelo Povo Terena



por Cláudia Cavalcante
23h06min

Eloy Terena, ao centro, durante a defesa de sua tese.
Para entender um pouco sobre o processo de retomada levado a cabo pelo Povo Terena, localizada no estado de Mato Grosso do Sul, o Blog do Moitará entrevistou o advogado e pesquisador indígena Eloy Terena, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Fluminense (UFF), para falar de sua tese de doutorado.

A tese de Eloy Terena aborda o despertar do Povo Terena para os seus direitos, a organização das lideranças no Conselho Terena de Mato Grosso do Sul e a retomada dos territórios tradicionais como exercício legítimo de direito.

O autor faz uma abordagem crítica da história de seu povo, a partir dos escritos históricos e antropológicos já trabalhados por outros pesquisadores não indígenas.


Blog do Moitará: O que motivou a escolha do tema?

Eloy Terena: Antes mesmo de resolver estudar antropologia, duas coisas me incomodavam. A primeira era saber mais da minha própria história, dada a limitação, num primeiro momento, da memória de minha família Terena, o que é perfeitamente compreensível diante do contexto histórico por que meus antepassados passaram. Quando buscava informações em livros e em material produzido, notei que os autores unanimemente repetiam sempre as mesmas coisas: que os Terena vieram do Chaco e sua história era dividida em três ou quatro tempos. A segunda, deriva desta mesma afirmativa, que começou a me incomodar já depois de graduado, quando fui atuar enquanto advogado nos processos judiciais. Era e ainda é, muito recorrente os advogados dos fazendeiros sustentarem suas defesas afirmando que os Terena não podem ter terra porque não são brasileiros, e sim oriundos do Chaco paraguaio. Estes dois pontos constituem razões decisivas para minha decisão de cursar o doutorado em antropologia e averiguar de perto a discussão em torno dessas afirmações não refutadas.


Blog do Moitará: A sua pesquisa traz à baila a discussão da presença Terena nos escritos etnográficos e como categorias presente nesta discussão podem ser rearticuladas e contribuir para a antropologia enquanto ciência. Nesse contexto, qual papel do pesquisador tendo em vista que és um Terena?


Eloy Terena: A pesquisa, desenvolvida sob orientação do professor Dr. Antonio Carlos de Souza Lima, propiciou o contato com discussões da antropologia, indispensáveis para a compreensão dos processos históricos vivenciados e protagonizados pelos povos indígenas. Na minha dissertação de mestrado, defendi o território tradicional como direito fundamental dos povos indígenas, arrazoando a impossibilidade de abordar qualquer discussão referente a direitos sociais, sem necessariamente falar de seus territórios. Neste ínterim, ficaram questões pendentes que tomei como objetivo para analisar neste empenho do doutorado, tais como a necessidade de se refletir criticamente sobre a história do povo Terena, tendo em vista vários argumentos utilizados por aqueles que são contrários ao reconhecimento formal dos territórios tradicionais do povo Terena, notadamente o argumento levantado nos processos judiciais de que os índios Terena não são brasileiros e sim paraguaios, argumento este muito acionado pelos ruralistas e que encontra voz soante nos trabalhos acadêmicos, ainda que involuntariamente, de historiadores e antropólogos que escreveram sem o devido cuidado ou mesmo sem uma nota explicativa sobre a conjuntura histórica do povo Terena. Outro aspecto é entender as relações interétnicas estabelecidas pelos Terena com a sociedade não indígena ao longo do avanço e consolidação das frentes de expansão agrícola e pastoril instaladas no Mato Grosso do Sul e, deixar evidente que os Terena nunca perderam o vínculo com seus territórios. As alianças políticas estabelecidas com outros povos indígenas e até mesmo com os purutuyê se deram, acima de tudo, no único intuito de se manter e permanecer como povo, ainda que para isso tivessem que acionar outros símbolos e outros elementos culturais. No mesmo sentido, chamo atenção para demonstrar como os saberes antropológico e histórico podem contribuir para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, a saber, exatamente neste momento em que os povos indígenas estão vivenciando uma intensa mobilização por direitos culturalmente diferenciados, e não só isso, são notórias também as ameaças concretas a esses direitos e ao trabalho antropológico. Neste sentido, abordo também o processo de retomada levado a cabo pelos Terena de Taunay-Ipegue; e, por fim, tendo em vista o meu pertencimento ao povo Terena e na condição de antropólogo, faz-se oportuno (re)pensar a formação e o trabalho do antropólogo. Seguindo também este objetivo, suscito reflexões iniciais sobre estes pontos a partir de minha trajetória pelo curso de antropologia e de igual modo o trabalho de campo. 


Blog do Moitará: - Como foi estudar o seu próprio povo?
Eloy Terena - Quando ingressei no programa de doutoramento me fizeram esse mesmo questionamento, já que é corrente e tradicional na antropologia estudar “o outro”. Neste ponto resgato mais uma vez minha história de vida, calcada na minha origem: não é possível fazer esse dissociamento. Para nós, povos indígenas, a única razão de deixar a aldeia e ingressar na academia é ter a certeza que poderemos nos apropriar desses “ditos conhecimentos científicos” e de alguma maneira usá-los em prol de nossa comunidade. É a oportunidade do pesquisador indígena, enquanto representante de seu povo, falar em nome dele. Como é corrente entre nós a expressão “já chega do purutuyê [branco] falar por nós! Nós temos que falar por nós agora, é para isso que enviamos nossos jovens para as universidades, para competir de igual”. Além disso, é momento oportuno para (re)ver tudo que foi escrito sobre nós pelos antropólogos. A terceira justificativa é de ordem social, pois neste trabalho pretendo, além de refletir criticamente sobre a história do povo Terena e sobre as relações interétnicas estabelecidas com o purutuyê, pretendo assentar balizas que demonstrem como o saber histórico e antropológico pode contribuir para o reconhecimento de direitos, especialmente o direito originário sobre os territórios tradicionalmente ocupados.


Blog do Moitará – O que dizer sobre indígena antropólogo?

 Eloy Terena na TI Taunay Ibegue, durante ritual.
Eloy TerenaO “indígena antropólogo não vai a campo”, no sentido tradicional. O indígena antropólogo faz o caminho inverso, pois ele possui a vivência e os ditos “conceitos nativos” e busca contrastar com a teoria dos antropólogos não indígenas. Se eu não fosse um Terena, provavelmente iniciaria o meu trabalho descrevendo como foi minha chegada ao campo, o contato com o grupo pesquisado e a apresentação do etnógrafo. Mas, indígena antropólogo não vai a campo no sentido tradicional, o processo é inverso. Esta confrontação de si próprio diante do grupo é que me chamou atenção. Por isso julguei fundamental, antes de refletir sobre este ponto, resgatar minha trajetória pessoal. Onde nasci, a qual família eu pertenço, as relações políticas dentro da comunidade, o movimento indígena e quem são meus “troncos”. Esta “confrontação” eu senti na pele quando olhei para a posição que ocupava no meu grupo de origem e no movimento indígena. Veio à tona a lembrança que vivi quando criança, de uma importante reunião entre caciques Terena à espera do procurador e do antropólogo da FUNAI. Era um acontecimento importante na comunidade e de repente essas duas figuras estavam reunidas em mim. Em 2015, após três anos de exercício da advocacia, meu nome era corrente em todas as comunidades Terena como o defensor dos direitos dos povos indígenas. E quando de meu ingresso no Museu Nacional para o doutoramento em antropologia social, o acontecimento foi comemorado por muitas lideranças, pois além de advogado, agora seria também antropólogo. Isso significava mais do que um ganho pessoal, era tido como um reforço à luta coletiva, pois eu estava na “linha de frente” desses conflitos e estaria ganhando um respaldo a mais, dando uma qualificação à defesa das comunidades indígenas

 
 Perfil
Em audiência no Senado/DF, em defesa pela permanência
 da demarcação das TI  na FUNAI.
Luiz Henrique Eloy Amado - Advogado. Foi membro da Comissão Especial para Defesa Dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Atualmente é assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB. É coordenador da linha de pesquisa Genocídio Indígena no Brasil, no Grupo de Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na era Contemporânea da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp. Fundador do Núcleo de Defesa e Assessoria Jurídica Popular de Mato Grosso do Sul - Najup/MS e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares - Renap. 







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