sábado, 14 de agosto de 2021

Em memória das meninas Guarani Kaiowá e Kaingang

Como proteger meninas, jovens e mulheres da violência física, sexual, moral e psicológica e de tantas outras?


Mariana Wiecko V. de Castilho
Ela Wiecko V. de Castilho
de Brasília


Agosto de 2021. No cenário nacional persiste a pandemia da Covid-19. Não bastassem as quase 600.000 mortes por falta de respostas estatais firmes e baseadas na ciência, cresce o número de feminicídios. Corpos e vozes das mulheres são contidos e silenciados. Não importa a cor, a idade e a classe social. Os desafios para o fim da violência ainda são enormes. Como proteger meninas, jovens e mulheres da violência física, sexual, moral e psicológica e de tantas outras?

Na semana em que se celebra os 15 anos da Lei Maria da Penha, duas indígenas (Guarani Kaiowá e Kaingang), uma de 11 e a outra de 14 anos, foram estupradas e mortas na Reserva Indígena de Dourados/MS e na Terra Indígena Guarita/RS, respectivamente.

Os sentimentos são de indignação e de repúdio contra a violência praticada e de sororidade para com as mulheres indígenas e não indígenas: mexeu com uma, mexeu com todas! É preciso registrar, denunciar, dar visibilidade às violências sofridas pelas meninas, jovens e mulheres indígenas e buscar caminhos para que o direito a uma vida sem violência seja garantido, levando em conta suas especificidades culturais.

As violências foram praticadas por membros das comunidades indígenas em estados em que aos povos indígenas têm sido negado o direito a suas identidades culturais e as suas territorialidades. Esse contexto precisa ser objeto de reflexão.

Violência no dicionário dos não indígenas era entendida como uma agressividade de forma intencional e excessiva para ameaçar ou cometer algum ato que resulte em lesão corporal ou morte. Atualmente, o conceito se ampliou para toda forma de discriminação, intencional ou não, que impede o exercício de direitos e liberdades pelas pessoas, produzindo ou reproduzindo desigualdades. Daí falar-se em violência estrutural e violência institucional. No caso dos Guarani e Kaiowá, o “mais próximo à tradução da palavra violência seria o reko vaí (viver/comportar-se de forma ruim/negativa)”. A violência vai além do físico e do xingamento, “envolve negação de direito, ameaça à vida/existência, o paradigma de que a natureza precisa gerar lucro, afirmar que uma criança tem prazer de ser estuprada ou, durante o estupro, expressar que as pessoas indígenas só geram prejuízo para o desenvolvimento da economia do estado, que somos invasores das terra e não plantamos” (KUÑANGUE ATY GUASU, 2020, p. 7).

A ampliação do conceito de violência se aproxima da percepção dos Guarani. A violência constitui o modo de vida da sociedade não indígena porque nega e rejeita o modo de ser, de pensar e de viver indígena.

No Mato Grosso do Sul há uma demonização da cultura Guarani e Kaiowá. “Casas de rezas estão sendo incendiadas, anciãs e anciões estão sendo criminalizados pelo discurso da igreja”. Isso pode ser visto também, nas notícias de uma casa da associação de mulheres Munduruku, no estado do Pará, e uma escola indígena Xacriabá, em Minas Gerais, ambas queimadas. Ainda no MS, “frequentemente, anciãs consideradas bruxas e feiticeiras, são torturadas, estupradas e até ameaçadas de serem queimadas” (KUÑANGUE ATY GUASU, 2020, p.10).

Quando a violência se instala nas comunidades indígenas é sinal de que a violência por fatores externos conseguiu reduzir significativamente as possibilidade de um povo indígena de viver conforme os seus valores. Assim, a violência interna que incide sobre mulheres e meninas nas aldeias têm ocorrido de forma semelhante com a que é sofrida por mulheres não indígenas: ela é física, moral, psicológica e sexual. E “nem todas conseguem ter apoio e acolhimento, nem todas conseguem denunciar porque não têm para onde ir, onde recomeçar, onde ter perspectivas de vidas longe da violência” (ibid., p.13).

Mas, chama atenção no caso da menina Guarani Kaiowá, que a violência redobrou quando ela prometeu denunciar os seus agressores. Foi a sua sentença de morte.

Chama atenção também o fato de que a embebedaram e que provavelmente também os agressores haviam se embriagado. A bebida foi um instrumento do colonizador e continua sendo um instrumento para o controle social dos indígenas e seu aniquilamento como povo. Por isso, pode-se compreender que, no governo federal ações de saúde mental não têm sido implementadas. Da mesma forma ações de reconhecimento das territorialidades dos povos originários. Essas ações poderiam ter impedido a morte da menina. Assim como de outras meninas e mulheres. Para as mulheres Guarani e Kaiowá, sem a demarcação dos seus territórios, as mulheres não estarão livres da violência, o território-terra é a extensão do corpo das mulheres.

A violência vivenciada por meninas e mulheres indígenas no Brasil também é realidade na Argentina, onde vivem 40 povos originários. Nas palavras de Moira Millán, “o Estado está nos matando de várias formas possíveis” (DATA URGENTE, jun. 2021). Em 22 de junho passado – dia da plurinacionalidade dos territórios -, o Movimiento de Mujeres Indígenas por el Buen Vivir chegou em caminata até Buenos Aires, desde vários partes do país, contra o “terricídio”, nominando as diversas formas de assassinato das formas de vida. A ideia nasceu em fevereiro de 2021 “entre prantos e dor pela violação e assassinato de uma jovem wichi, jogada num descampado. [...] Era preciso dar um basta de terricídio!” (DATA URGENTE, jun. 2021).

Os Estados, brasileiro, argentino e tantos outros, não querem assumir suas responsabilidades para com os povos originários de seus territórios nacionais. Por isso, as mulheres marcham e ocupam os espaços públicos e, em tempos de pandemia, os espaços virtuais em prol dos direitos coletivos. São elas que carregam a luta contra o extrativismo dos bens comuns em seus territórios; são elas que lutam e resistem junto com os homens por seus territórios; são elas que que dão vida, que cuidam, que protegem, que fazem a vida florescer nos roçados e nas risadas gostosas das kunhãs e kurumins e, têm o direito de viver. A forma de calar as mulheres é silenciando seus corpos, desde os mais frágeis, e infantis.

Que a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, em setembro, na cidade de Brasília, anuncie o florescer de uma nova primavera para as mulheres originárias.

Seguimos juntas, juntes, juntos! Nenhuma a menos!


Referencias:

KUÑANGUE ATY GUASU. Corpos silenciados, vozes presentes: a violência no olhar das mulheres Kaiowá e Guarani. Resumo do Relatório, nov. 2020.

DATA URGENTE. Vandana Shiva y Moira Millán. Terricidio en la India y Sudamérica. 18 jun. 2021. Disponível em: https://youtu.be/nM5OwXSyWmw.


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