quarta-feira, 16 de novembro de 2022

FEMINÍCIO INDÍGENA

ONU adota diretrizes para o processo de combate à morte de mulheres indígenas


Os índices alarmantes de assassinatos de mulheres na América Latina e em particular no Brasil chamaram a atenção pública, graças à mobilização política feminista, para a necessidade de que essas mortes sejam erroneamente rotuladas como “homicídios emocionais” e “crimes passionais” erroneamente rotuladas como “homicídios emocionais” e “crimes passionais”,  naturalizadas como mortes fatais e inevitáveis, como se fossem fruto do comportamento de homens doentios, monstruosos ou de relacionamentos problemáticos.

A afirmativa é de Amom Albernaz Pires, Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), com atuação no âmbito da Promotoria Especializada na Defesa de Mulheres em Situação de Violência Doméstica, em seu artigo intitulado "A adoção das diretrizes da ONU na investigação, processo e julgamento de mortes de mulheres indígenas".

Segundo o autor, tais mortes deveriam ser investigadas como crimes de poder, resultado contínuo de violências precedentes ancoradas na desigualdade estrutural de gênero, ou seja, deveriam ser lidas como mais uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, como define a Convenção de Belém do Pará. "Afinal, as mulheres estão sendo mortas pelo fato de serem mulheres, por razões de gênero, e é dever do Estado evitar tais mortes, assim como investigá-las e puni-las segundo essa perspectiva".

O autor também ressalta que dentre as primeiras e mais importantes ações de fomento à implementação da Lei do Feminicídio, encontra-se o documento Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios), lançado pelo Escritório da ONU Mulheres no Brasil em abril de 2016 após os trabalhos de grupo interinstitucional formado por profissionais dos sistemas de justiça criminal (judiciário, ministério público, defensoria pública e advocacia) e segurança pública (polícias militar e civil), que adaptou à realidade brasileira o modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero.

No estudo, Amon Pirez cita Ela Wiecko, professora de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, onde lidera o Grupo Candango de Criminologia, o Moitará-Grupo de Pesquisa em Direitos Étnicos e o Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Família, além de ser Sub-Procuradora da República do Ministério Público Federal, para destacar a contribuição das Diretrizes quanto sua à contribuição para que a perspectiva de gênero seja sempre incorporada pelos sistemas de segurança pública e justiça criminal, desde o laudo de exame de local e a necropsia, em todos os casos de morte de mulher, para que seja verificada a eventual presença de razões de gênero, inclusive na hipótese aparente de suicídios, mortes acidentais ou de causas indeterminadas. 

Ainda conforme o estudo, o documento enuncia dez regras mínimas para a investigação eficaz das mortes violentas de mulheres, que serve de guia à ação institucional com a devida diligência e provê ferramentas para que a perspectiva de gênero seja adotada pelos profissionais, levando-se em conta – desde o início da investigação e ao longo do processo judicial e do julgamento dos casos – as especificidades da condição de mulher em situação de violência e suas interseccionalidades com outros marcadores de diferença como classe, geração, sexualidade, origem, deficiências, raça/cor e etnia. No caso da morte de mulheres indígenas:

A interseccionalidade de gênero e etnia se expressa como diferenças nos papéis que homens e mulheres desempenham nos respectivos grupos e povos, e que nem sempre podem ser compreendidos e explicados a partir das matrizes de gênero e poder que são acionadas para o entendimento das sociedades ocidentais. Tratando da violência contra mulheres indígenas, Ela Wiecko de Castilho (2008) destaca que a questão suscita desafios teóricos, e pondera que a violência contra as mulheres indígenas pode ser praticada por não-índios e por índios. No primeiro caso, a violência sexual é frequente (embora nem sempre resulte em morte), enquanto as violências praticadas por índios envolvem, também, fatores precipitantes como o consumo de bebidas alcoólicas e drogas. Mas há também os casos em que a violência ocorre quando as mulheres buscam participar em ações de liderança e terem direito de expressão, confrontando a ordem de gênero de suas culturas (CASTILHO, 2008). Assim como se observa o racismo institucional como obstáculo para que as mulheres negras tenham acesso à justiça, o preconceito e a discriminação contra minorias étnicas também afetam e criam obstáculos para a universalização do acesso à justiça para as mulheres e agrava a situação de vulnerabilidade social em que se encontram. [Extraído das Diretrizes, p. 37]


"Mulheres e meninas indígenas (comparativamente às não-indígenas) têm acesso dificultado à Justiça e vivenciam discriminação institucional pela sua condição étnica. Há desconhecimento e precariedade dos canais estatais para formalização de denúncia de violências, localizados longe das comunidades indígenas, como as raras delegacias especializadas no atendimento de mulheres. Mulheres e meninas indígenas são mais vulneráveis a todas as formas de violência doméstica (física, psicológica, sexual, moral e patrimonial praticada por parceiros íntimos e familiares, conforme definição da Lei Maria da Penha) e não-doméstica (como exploração sexual, tráfico de pessoas e feminicídios cometidos fora das relações íntimas), afirma o autor em seu artigo.

Amon Pires finaliza alertando que o atendimento das Diretrizes da ONU para atuação com perspectiva de gênero passa pelo cumprimento das normas legais vigentes, a exemplo do art. 4º da Lei Maria da Penha, dos arts. 7º, “b”, e 9º da Convenção de Belém do Pará, e das Recomendações Gerais nº 19, nº 33 e nº 35 do Comitê CEDAW, cuja inobservância pode resultar em erros e injustiças na apreciação dos casos, assim como em violação ao direito à justiça, à verdade e à memória das vítimas sobreviventes e indiretas, a implicar a responsabilização internacional do Estado brasileiro perante o sistema interamericano de direitos humanos.


Clique para conferir à íntegra do artigo.


Autor: Amom Albernaz Pires.

Com adaptações de Cláudia Cavalcante.


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